um relato sobre a relação da televisão com os lugares de nossas memórias infantis
Texto extraído do livro Materialidades Televisivas – Conexões Escolares com a TV Digital (2017)
TV Fusca
* Autora Shirley Santos
Historiadora e professora da educação básica de Belo Horizonte
“Ela não entendia muito bem por que seu pai ainda possuía aquele carro. Carro?
Sim, aquele fusca branco 66, há vinte anos mal saía da garagem, a não ser quando o pai resolvia que o “Poisé” precisava esticar as pernas, quer dizer, as rodas. Lavava, polia, lustrava, sentava em um dos bancos cobertos com um tapete de retalhos, ligava o som, ouvia “Eduardo e Mônica”, olhava para o portão, mudava a música, tirava uma flanelinha amarela do porta-luvas, limpava o volante e seu olhar se perdia em todos aqueles movimentos que ele, religiosamente, fazia questão de repetir a cada semana. Até insinuava uma curva à esquerda, outra à direita, mas poucas vezes ouvia-se o som daquele motor. Para a menina, havia algo mágico entre os dois e ela ansiava em descobrir um dia o segredo que os fazia tão cúmplices.
O sol pouco piscou naquela manhã. Um raio ou outro, vez ou outra, acertava diretamente seus olhos, mas a menina sabia que aquela indecisão do sol em brincar de pique-esconde trazia, nas entrelinhas, nos “entrerraios”, alguma notícia especial…
Quase não houve tempo de encaixotar tudo. O caminhão tinha pressa. Mas a menina não queria deixar nada para trás. Afinal, uma vida resumida em uma bicicleta vermelha, herdada de seu pai, uma boneca cujos cabelos teimavam em se “descolar” a cada penteado, alguns poucos livros que sua mãe trouxera como lembrança dos tempos de escola e seu presente do último aniversário: uma TV portátil amarela que ficava em uma cadeira em seu quarto que, segundo ela, era o lugar mais confortável de sua casa.
Tudo pronto! A buzina do caminhão alertava quanto à demora. O pai, após todo o ritual, retirou o fusca da garagem para seguir à frente do caminhão. A mãe e o irmão iriam na boleia. E a TV? O pai sugeriu que a enrolasse em um cobertor para que não estragasse. Mas, e se a estrada fosse esburacada? O pai contava que a nova casa ficava em um lugar de acesso “aventuroso”… A menina sempre achava que o pai usava aquelas palavras para deixar as coisas mais poéticas! Ele sabia das “coisas”…
Como a menina, apesar da pouca idade, tinha um poder de convencimento daqueles, conseguiu convencer o pai a irem, a TV e ela, no banco de trás do “Poisé”. Ah, essa seria a primeira vez que a menina viajaria naquele fusca. Na verdade, foram poucas as saídas, e aquela, tendo a TV por companheira, fazia-lhe muito bem!
O pai dizia que não era longe, mas, afinal, por que estava demorando tanto? Por que o carro andava tão devagar? O pai estaria prolongando a viagem para que tivesse a mesma sensação que ela, abraçada à sua TV? Caso fosse isso, estaria tudo bem, afinal, não era sempre que se ouvia aquele motor. E muito menos uma menina abraçada àquela TV enrolada em um cobertor suspirar tanto, vendo seu pai, literalmente, fazendo as curvas que tanto treinava na garagem.
A poeira encobria seu olhar. Pouco a pouco uma casinha branca surgia entre as árvores. E o pai tinha razão, dizia que ela iria gostar da casinha com alpendre e do pé de pitanga ao lado da cisterna. Ela gostou… e gostou muito.
Colocar tudo no lugar era razoavelmente fácil. A mãe já havia arquitetado tudo. Planejamento era com ela mesma! Sabia exatamente o melhor lugar para cada objeto.
Mas, no quarto da frente, com janela azul, apenas uma cama, uma cômoda e a cadeira aguardavam a menina e sua companheira de viagem enrolada no cobertor xadrez. Aquele momento era de descoberta. A casinha branca lembrava a casa da avó, sem o pé de manga em que subia para se esconder dos primos, mas com o pé de pitanga, que, aos olhos da menina, parecia muito mais atraente e delicado, principalmente por suas frutinhas lembrarem pequenos corações, iguais aos que ela colocava em todos os pingos dos “is”.
O dia foi pequenino para tanta curiosidade. E os poucos raios de sol que ainda restavam “alaranjaram” aquela tarde de outono. A menina, que não se cansava de admirar a vista com bracinhos apoiados no parapeito do alpendre, conseguia avistar com fascínio a tudo, mas sentiu que era hora de ajeitar as coisas no quarto e “aconfortar” sua pequena companheira amarela na cadeira.
Havia algo diferente no ar. A menina sabia que aquele lugar em nada se assemelhava à sua antiga casa, mas, somente ao esconder do sol, pôde perceber que o brilho vindo da cozinha era da vela mariana que sua mãe, providencialmente, pedira ao pai para comprar aos montes.
Como se uma fagulha daquela luz caísse sobre a menina, de ímpeto, correu ao quarto para confirmar aquilo que sua cabecinha insistia em não querer acreditar. Como poderia, naquelas condições, apesar de todo o conforto da cadeira, a sua TV amarela não funcionar?
Naquele instante, segurar o disparar do coração era algo inevitável, afinal, aquele havia sido um presente muito sonhado. Mas para que presente tão esperado se, agora, sua voz havia sido silenciada?
A menina já não mais se encantava com as pitangas em forma de coração, nem com a vista, acomodada ao parapeito do alpendre. Ia, vez ou outra, até o quarto para, com o olhar, consolar sua TV que, na cadeira, sem o brilho habitual, pouco inspirava aquela cabecinha tão sonhadora.
O pai, que por vezes empregava uma palavra e outra para despertar o lirismo recorrente da menina, ainda não descobrira palavra capaz de deixá-la feliz. Não era certo, mas, naquele momento, mesmo com o sol “tilintante” no alpendre da casa, o pai percebia que a menina ansiava por outro sol.
Nos dias que se seguiram, a calmaria do lugar contagiou a todos, como que embalados ao vento. Não a menina! Que, da janela azul do seu quarto, revia atentamente o ritual do pai, que lavava, polia, lustrava, sentava em um dos bancos cobertos com um tapete de retalhos, ligava o som, ouvia “Eduardo e Mônica” e continuava com a sua cumplicidade explícita com o carro. Algo a fascinava ao observá-los, mas ainda não sabia bem o que era!
Domingo! Na noite anterior, pai e mãe conversaram sobre a menina, sobre a TV amarela e o quanto tudo aquilo, todo o novo, era novo demais para ela. A mãe fechou a porta. Era cedo! E, com uma sacola estampada e alças de couro,
passaram pelo alpendre. Ao longe, avistava-se um banquinho de madeira ao canto da estrada. Pelo desgaste do chão, sabia-se que, naquele lugar, apoiavam-se os pés daqueles que se assentavam no pequeno banco de madeira.
Não demorou muito! A mãe já sabia que os instantes para a passagem do ônibus seriam breves. Tudo a seu tempo… naquele lugar cujo tempo mais parecia esbanjar tempo.
A mãe, com cuidado, apoiava a sacola estampada no colo. O irmão, embalado pelo sacolejar do ônibus, apoiava a cabeça sonolenta no braço da mãe. A menina sentou-se à frente, ao lado de um senhor que carregava um galo garnisé embaixo do braço, presente ao neto que fizera aniversário no domingo anterior, ele dissera.
Não demorou muito a chegar. Quase todos já haviam descido no caminho. A mãe, o irmão e a menina desceram apressadamente, antes mesmo que a poeira levantada pela partida do ônibus pudesse alcançá-los. O sol daquele dia despontava imponente. A menina apenas abria uma frestinha de olho para enxergar o outro lado da rua. Aquele
era o lugar…
A mãe retira da sacola algo que não parecia estranho à menina. Recentemente ela havia visto o pai retirando aquele objeto do carro. Não sabia exatamente para que servia, mas percebeu que, nos rituais de cumplicidade com o fusca, Eduardo e Mônica já não narravam a sua história de amor.
O senhor que pegou o objeto disse que precisariam esperar por duas ou três horas. Não importava o tempo. O ônibus sabia exatamente que não precisariam dele até que o objeto estivesse pronto para retornar à casa.
Pronto! A mãe esticou o braço.
Esse era o sinal que a menina mais aguardara após todo aquele tempo sentada à beira daquele caminho que lhe trouxera tantas ideias a serem concretizadas ao chegarem em casa. Afinal, tudo estava em seu devido lugar. E
isso era bom…
A noite despontava ao longe. Mas despontava especial. A menina não sabia exatamente, mas sentia. Sentia porque aquele havia sido um dia de muitas sensações. O pai já havia chegado do trabalho. E tudo parecia muito peculiar…
A mãe pediu que todos fossem ao quarto da menina. A pequena cama ao canto estava especialmente arrumada. A mãe trouxe as almofadas bordadas com pontos de casinha de abelha que ela fizera na aula de artesanato. Eram especiais. O pai preferiu sentar-se em uma cadeira que trouxera da cozinha, dizia que as costas já reclamavam cuidados.
A menina não estava entendendo exatamente o porquê daquela reunião inesperada em seu pequeno quarto. Estava apreensiva, inquieta! Mas a sensação, ah, era boa!
Em quaisquer momentos, estarem juntos era maravilhoso! Não importando o lugar.
Assentaram-se todos à beirada da cama. Exceto o pai, que se levantou e foi em direção à cadeira com a TV amarela. Sim, havia algo diferente embaixo da cadeira. Era o objeto que a mãe, o irmão e ela haviam levado àquele senhor de bigode preto à beira da estrada empoeirada. Estava tudo muito estranho, mas a menina gostava…
De repente, uma luz familiar, mas um pouco esquecida, cegou-a por instantes. Não pôde acreditar no que via, ou tentava ver! A sua TV amarela estava de volta, e com uma vivacidade única, mesmo que, não sabendo a menina, fosse só por alguns especiais instantes.
A sensação tomada pela menina não se explica em palavras. Talvez nem existam palavras. Mas, seguramente, aquela teria sido uma sensação única, singular. Pensando bem, como poderia, a partir de então, concentrar-se tamanha felicidade somente naquele pequeno quarto de janelas azuis? Ah, o coraçãozinho generoso da menina sabia que momentos de tamanha felicidade mereciam ser compartilhados, como no dia em que a mãe fez empadão de frango e serviu com
café de garapa para todos os vizinhos no alpendre. Felicidade pura!
E foi assim… Nos domingos seguintes, ao piscar da TV no alpendre da casinha branca de janelas azuis, cada um, à sua maneira, em seu cantinho, e com olhos vidrados em quase êxtase, reunia-se, dali de pertinho ou de não tão pertinho assim: vizinhos que se encantavam com todas aquelas imagens e vozes que vinham daquela caixinha amarela posicionada sobre a mesma cadeira de então.
Na plateia, a menina. E atenta às mais variadas reações dos amigos que ali se reuniam em todas aquelas noites de domingo, compreendeu que, para dar vida à sua companheira amarela, o pai precisou silenciar “Eduardo e Mônica”, pois a bateria, que nos rituais entre o pai e o fusca anunciava a todos aquela história de amor, agora alimentava a pequena TV, dando voz a outras histórias, a outros enredos.
Não, certamente a cumplicidade entre o pai e o fusca 66 não acabaria, pois era algo mais forte que os unia. A menina compreenderia isso com o tempo…
Com o tempo, também, muitas outras histórias com muitos outros personagens surgiriam. Talvez não tão singulares como os daquele alpendre, os que ficavam proseando com o pai embaixo do pé de pitanga ou aqueles avistados pela
menina debruçada na janela azul.
Ah, mas uma história a menina certamente chamaria de sua. A história de um presente amarelo que conseguiu reunir tantas outras “histórias” naquele lugar onde o tempo tinha tempo de sobra e, a partir de então, muita história para contar…”
Fonte: DIAS, M.; ALVES, A.N.R. ; SOUSA, C. C. (Org.); FEITOSA, D. F. (Org.); OLIVEIRA, H. S. (Org.); FREITAS, L.G. Materialidades Televisivas – Conexões Escolares com a TV Digital. 1. ed. Belo Horizonte: FaE – UFMG, 2017. v. 4. 58p .